quarta-feira, 23 de setembro de 2009

AUDIÇÃO MUSICAL

Está quase na hora de minha apresentação ao piano. A música programada é bastante curta. É a presença que importa, havia dito a professora, estimulando-me a participar da audição musical de fim de ano de sua escola.
O teatro do tempo do Império, recentemente restaurado, continha cerca de cem cadeiras dispostas em filas que iam de um lado ao outro da platéia deixando somente um pequeno espaço entre elas e a parede por onde circulavam as pessoas. Saindo de um lado do palco, formando um círculo quase completo, uma série de pequenos camarotes surgiam terminando no outro lado, onde haviam cadeiras de melhor qualidade - poltronas de veludo na realidade - que as da platéia. Eu não quero dizer mas não posso ficar calado, estas eram de palha. Talvez faltara verbas ou tempo para comprar algo melhor, pensei, no momento em que coloquei os pés no palco e vi a diferença gritante. Percebo então que estou calmo demais apesar de não ter ensaiado a tal música. Tento executá-la na mente - um mini-ensaio - enquanto as pessoas vão se acomodando nos seus assentos. Começo a ler com uma certa dificuldade os sinais musicais que estão escritos em um papel envelhecido e num sobressalto noto ao verificar que a música programada não era aquela que pensava ser e que de alguma maneira sabia enrolar um pouco no piano. Daí fiquei em dúvida se não havia sido um erro qualquer, uma troca de última hora. A partitura da música que estava em minha frente me era desconhecida apesar de parecer bem simples mas tinha dificuldade em decifrar as notas no meio da penumbra e por trás das lentes embaçadas dos óculos. Estou catando as notas, pensei; esta é uma constatação da verdade nua e crua. Entro em pânico. Tenho certeza que vou perder o controle mas tento permanecer calmo. No fundo há um desespero. A professora, uma senhora nos seus cinquenta anos, entre as cortinas de veludo verde no fundo do palco, está quase fora de si de nervosa. De sua boca vermelha entreaberta sai a ponta da língua rosada e úmida. Teria sido outrora um lagarto ou outro réptil qualquer, pensei. E aquela fotografia de um jovem padre pendurada da sala onde transcorriam suas aulas estaria retratando o mesmo homem, agora barrigudo e pálido, que por muitas vezes vira lá no fundo do quintal espiar pela porta de madeira escura o que estava acontecendo quando caíamos em gargalhadas no meio da aula?
O PIQUENIQUE

Existia nele um certo grau de aflição; algo indiferenciado. Pensava assim: e se fosse visitar algum amigo? Mas esta ideia lhe ressaltou ainda mais seu desconforto e lhe veio a visão de sair correndo de lá pela enorme vontade de retornar à sua cama.
Pela manhã vira um ônibus de excursão parado e ao seu lado algumas pessoas esperando o momento de embarcarem; iam passear.
Alguns homens brincavam na calçada com uma bola iniciando asim seu dia de divertimento. Já estavam ensaiando as grandes jogadas que seriam realizadas posteriormente na beira do mar. Era um início de um continuum que teria seu ápice provavelmente algumas hora mais tarde antes de se embebedarem completamente e de se fartarem com a comida preparada por suas mulheres na noite anterior ao piquenique. Depois dormiriam esparramados na areia debaixo de alguma árvore ou sob alguma sombrinha de praia estampada de fundo azul e com flores vermelhas e amarelas.
Uma de suas mulheres de maiô preto sentada ao lado do marido que ressona, limpa os dentes com um palito e depois lambendo os lábios olha ao longe vagamente, o horizonte?
26 de março de 1988
A PORTA DO QUARTO 5


- Se parece com o pai, diz a Parteira.
- Não, não, se parece com a mãe, murmura a tia da criança, parando de mascar chiclete.
- Que nada, a avó grita agudamente. Era o Toninho quando criança. É a carinha e o corpinho do Toninho. Como era bonitinho, diz, surgindo no rosto uma expressão de desânimo.
- Não vovó, esbraveja a irmazinha, acho o nenê tão parecidinho com a mamãe. Tão gordinho!
- Me lembra o meu pai, naquela fotografia que a mamãe tinha, afirmou cerimosiosamente a outra avó. No meio da longa barba, a azul transparente dos olhos.
- O choro dele é forte que nem a voz do vovô, fala fininho o irmão.
- Pelo jeito que mexe as pernas vai ser um jogador da Avaí, diz com orgulho o pai, pendurando uma camisa com listas azul e branca na porta do quarto 5.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

O CHEFE

De uma vez por todas, disse em tom alto, de uma vez por todas hoje eu digo o que tenho que dizer, e bati com força na porta fechada.
Ninguém atendeu mas continuei parado em frente à porta do Diretor esperando empertigado que alguma pessoa me visse ali e para tanto olhava para um lado e para outro, e impaciente trocava os papéis reveladores da mão direita para a esquerda e vice-versa.
Bati novamente com mais força porém já não mais me sentia natural dando aqueles socos na madeira envernizada. Lá de dentro da sala vinha o som estridente da campainha do telefone desesperadamente tentando ser aquietado, mas como poderia acalmá-lo se a porta estava fechada? Olhei insistentemente para trás na esperança de que a visão de alguém me aumentasse a vontade definhada de contar ao Chefe toda a verdade. Este pensamento me aprumou. Arrumei a gola da camisa, passei a mão nas mangas do paletó para retirar algum pó inexistente e arrumei os óculos. Bati na porta logo em seguida e desta vez cheguei a dizer bem alto o nome do Diretor para em seguida ficar todo ruborizado pelo tom da voz que soou em falsete. Perscrutei, nestas cincunstância, com os cantos dos olhos todo o ambiente ao meu redor a fim de certificar-me se alguma viva alma naquele momento estava me observando.
Esperei um pouco até me restabelecer do nervosismo e dei novamente dois socos de leve na porta torcendo para que ninguém tivesse escutado as batidas mas mesmo assim mexi na maçaneta e gritei em vom firme: Senhor Diretor, quero lhe contar uma novidades.
Transferi então os papés outra vez para a mão direita e saí em passos rápidos e mudos sempre procurando espreitar se Pedro, José ou Maria ou quem quer que fosse, de repente surgiria no fundo do corredor.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

A HISTÓRIA DO LIVRO QUE NÃO COMPREI


Hoje eu contei pela terceira vez, às mesmas pessoas, a história do livro que não comprei enquanto tentávamos entender o significado de algo que agora não mais importa saber. Sempre a mesma coisa, disse baixinho para mim mesmo. Se não sabes fica calado. Por teres lido uma ou duas frases de tal livro ficas acreditando que lá está a explicação daquilo que compulsivamente queres entender, e quando não convences as pessoas com tuas teses inventas outras coisas pra dizer.
Se bem que desta vez o último relato da história se resumiu a uma pequena frase; segundo, me pareceu que tivesse falado tão baixo que nada escutaram. Há ainda a suspeita que não posso negar, que talvez só tenha mexido os lábios enquanto pensava na tal cena da livraria.
Houve sim uma dissonância e um breve momento de constrangimento no ar por esta possível colocação sem pé nem cabeça. Um breve momento sim, diriam, mas o suficiente para nem sei bem o quê, porém o bastante para ter o efeito que teve.
E se na próxima reunião eu me esquecer por um instante de tudo isto e repetir a história do livro que não comprei?

domingo, 13 de setembro de 2009

BAGULHO


Ela ia andando de lá para cá na avenida central de um bairro da periferia da cidade onde fazia ponto há dois meses. Começara a trabalhar no pedaço logo depois da festinha de seus 18 anos oferecida por sua prima com quem morava.
Aquela noite estava como que morta. Stephany de Mônaco só via carros passando com crianças, mulheres gordinhas de cabelos tingidos de louro e seus maridinhos retesados, uns com bigodes outros não, nos volantes de seus automóveis reluzentes dirigindo-se àquele restaurante em que se come muito por pouco dinheiro com a condição de se enfrentar uma fila que se enrosca em si própria.
Lá no início da avenida Kobrasol, ali perto do clube da terceira idade, surgiram cinco ou seis rapazes daqueles que usam calças largas tipo " grunge " com as cuecas aparecendo e com bonés por baixo do capuz rindo, ou melhor gargalhando, e falando coisas que ela não podia decifrar mas que provavelmente estavam relacionadas a tanta graça. É...talvez houvesse uma ajudazinha de algum bagulho. Ela os havia percebido, pela arruaça, já lá bem longe e quando por eles passou olhou-os de relance e disse baixinho: daí não rola nada, e continuou em frente afastando-se do grupo.
Do outro lado da rua a travesti anã de um peito só agitava no pedaço. Coitada, pensou Stephany, só conseguira dinheiro para uma mamica. A bombadeira, aquela praga, não arredara o pé, não fazia fiado. Giselle do Brejaru estava montada de malha zebra, de peruca lilás e de sandália de plástico transparente que comprara num brechó qualquer. Hoje estava com a dentadura que pedira emprestada a mãe; a dela havia sido roubada pelo único freguês da noite anterior. Correra e gritara atrás dele mas não conseguiu alcançá-lo.
Os rapazes ao passarem por Stephany continuaram a rir e a falar coisas soltas no ar. Moviam-se com andar balançante, algumas vezes afastando-se entre eles outras aproximando-se como se fosse alguma espécie de dança de rua e então sem mais nem menos jogaram sobre ela algo luminoso, um novelo de fios prateados misturados com colorações amarela e vermelha.
Passava um carro pleno de crianças freguesas do tal restaurante de massas quando sentiu uma leve pressão na garganta. Levou a ela a sua hábil mãozinha porém parecia que nada havia encontrado pois logo em seguida surgiu um movimento de desdém em seus lábios. Alisou o saiote vermelho e seguiu em frente olhando fixamente para um lado e para o outro na procura de alguém, um freguês perdido na noite chuvosa e escura. Nada, a não ser uma gargalhada histérica e rouca de Giselle do Brejaru. A pressão na garganta parecia aumentar a medida que caminhava ao longo da avenida e se mostrava agora como que sufocada e bastante irritada. Depois sacudiu suas mãos como se tivesse levado um tipo de choque descrevendo no ar um arabesco qualquer.
Stephany andava cada vez com maior dificuldade empregando toda as forças para se locomover e seus pescoço e cabeça estavam como que puxados para trás. Tentava se desvencilhar daquilo que envolvia sua garganta mas qualquer tentativa era inútil. Havia em seu rosto maquiado um ar de espanto e de incompreensão.
Ela agora era puxada com mais vigor pelo tal fio invisível e luminoso que a enlaçava e a trazia para eles como se fosse uma pandorga sendo recolhida do céu. Parecendo sem ar - a boca aberta, os olhos esbugalhados e as mãos na garganta -andava para trás apesar dos esforços de seguir na direção contrária. Sua fisionomia de repente de modificou e no meio de seu semblante de pavor havia algo como se fosse uma pincelada de prazer, como se estivesse recebendo um carinho do amado. Tinha sacado! Levou a mão direita à bolsinha amarela e daí retirou uma lâmina prateada e num movimento certeiro à nuca cortou o fio que a prendia àquele bando. Eles perderam o prumo desfazendo a coreografia canabinóica e por pouco não se estatelaram no asfalto molhado da noite escura e fria da avenida e então Stephany saltitante correu até o telefone público onde ficou gritando em falsete no aparelho seboso: alô...alô.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

ÉSTER


Lá fora o vento sul tenta em vão arrancar as folhas das árvores retorcidas que ficam na parte baixa do terreno da casa de Éster. Logo depois vem o pequeno penhasco onde nesta noite as águas do mar se jogam produzindo um extranho ruido que me deixa tenso, talvez por reacender uma imagem fictícia da invasão da terra pelos oceanos.
Estou sentado em uma poltrona vermelha na sala e pelos vidros da janela posso observar o furor da tempestade. Sinto algo ao meu redor, talvez um movimento sutil, viro minha cabeça levemente para a esquerda e vejo a dona da casa descendo a escada com um objeto nas mãos. Na verdade, um pequeno fichário esverdeado dos lados e com tampa transparente é o que ela está trazendo lá de seu quarto que fica na parte superior da casa dentro de uma torre. Veste uma camisola azul feita de um tecido felpudo e nos pés nada alem da pele fina e branca. Nenhum ruído no seu andar, nenhum som dentro da casa, somente o barulho assustador da noite inquieta e escura . Penso que vai pegar um friagem assim com os pés descalços e a espero no fim da escada com um destes chinelos " do in ", cheios de agulhinhas de plástico.
Senta-se então na mesa oval enfeitada com uma toalha de renda tunisiana. Coloca o fichário encima da mesa e passa a procurar dentro dele por alguma coisa, primeiro na parte em que estão as fichas com letra R,depois vai para as de letra H. Tira dali um papel escrito, uma carta penso, e começa a lê-lo e então esboça um pequeno sorriso que pende para o lado esquerdo da boca.

1977

sábado, 15 de agosto de 2009

A mulherzinha de bermuda bege

Daí ela chegou no açougue vestindo uma daquelas bermudas largas que estão na moda, de tom bege e tecido mole, e tentou furar a fila.

Eu estou muito aflita, disse ela, com muita pressa pois estava no velório de minha tia e de repente me lembrei que meu marido ficara sem almoço e preciso voltar o mais rápido possível. Ele gosta tanto de bife com batata frita, só que hoje vai ter que se contentar com o que tiver. Disse tudo isto com a voz em um tom de vítima mas também denotando superioridade.

A roupa que vestia me irritou de maneira bastante profunda, principalmente pela moleza do tecido e também por ter entrado na moda roupa tão deselegante,então eu falei num tom baixo porém firme: todos estão com pressa e a senhora deverá entrar na fila.

Como último recurso lhe caíram lágrimas mas não cedi. Olhei firmemente para umas lingüiças secas que estavam penduradas perto da balança e até pude ler numa etiqueta azul sua procedência: Jaraguá do Sul. Então me lembrei da tia Wally, dos tempos em que adolescente ia passar férias em sua casa naquela cidadezinha alemã e comia apple-strudel e chocolate dissolvido em leite condensado.

Retornei meu olhar às pessoas e pude ver então o açougueiro sorrateiramente entregando um saco plástico com alguns bifes à mulherzinha de bermuda bege.