segunda-feira, 24 de maio de 2010

COM XIS?


É a Regina, diz ela assustada ao telefone ao seu primo médico. Estou com queimor atrás do peito, bem no meio. Será coração?
Não, não, responde ele, deve ser pela gastro-enterite. Não tiveste diarreia há poucos dias, pergunta já desconfiado se era mesmo sua prima que lhe contara sobre este problema ou fora sua vizinha de cabelos pintados de vermelho que sempre parava em frente ao portão quando estava varrendo a calçada e falava sobre as funções de seu intestino. Toma aldrox, fala ele com veemência.
Com xis no fim? Agora em um tom mais baixo que anteriormente pergunta ela de maneira firme.
Sim, com xis no fim, responde ele. Toma uma colher de sopa agora e outra antes de deitar, e amanhã mais quatro vezes nos intervalos das refeições. Amanhã te ligo, fala. 349....pensa, e o resto do número não aparece dentro da cabeça. Onde estará minha agenda? Esta mania da empregada guardar tudo me enloquece.
Joga-se na poltrona, liga a TV, fecha os olhos e tenta dormir. Na sua mente repete-se:com xis,com xis....xis....xis....is....s....
SERIA CHOPIN?


Uma melodia, talvez Chopin,chegou-lhe aos ouvidos quando passava defronte a casa dela tirando-lhe instantaneamente o propósito que há pouco fizera de não mais querer se lembrar o nome de um tal senhor.
Afinal de contas,qual é o nome do teu terapeuta, disse ele colocando a cara entre a grade de losangos prateada que protegia a janela da casa da vizinha.
Alguém, alguns dias atrás, ao telefone perguntara num repente, sem se anunciar: alô, alô - ou teria sido ola, ola - o senhor sabe o nome do terapeuta de sua vizinha? A sensação naquele momento era de que podia dizê-lo. O sotaque castelhano, o bigodinho virado levemente para cima - um Salvador Dali tímido - , o sapato preto reluzente de cromo alemão, o corpo esbelto, a barba bem feita eram as lembranças de quando o viu pela primeira vez logo que aportou em Florianópolis vindo de Buenos Aires. Depois outra recordação de anos mais tarde quando o escutara em uma palestra na Universidade e aí já com uma barriga proeminente e barba e cabelos por cortar, ah, já alguns fios brancos em seu cabelos escuros e ondulados. Até o nome da escola psicológica da qual era o porta-voz apareceu no meio do emaranhado de seus pensamentos como um clarão amarelo-ouro entremeado de azul-prateado. O nome dele, contudo, tentou sair das entranhas de seu cérebro mas algo o prendia como se houvesse um muro de fortes pedras cinzentas ao seu redor e pelas frestas por onde a água fluia em dias de chuva ele tentava escapar para a superfície da sua consciência, mas....inútil esforço; a ponta de uma letra se trancara, ou talvez se agarrara, nas bordas de uma pedra.
Como sei de fatos desta mulher, pensou, e um susto tipo relâmpago passou-lhe dos pés à cabeça deixando um mal estar no estômago por alguns momentos. Que saberia ela de mim?
O nome estava lá no emaranhado de suas lembranças com vontade de sair dali, se libertar, mas agora como que enganchado em um monte de anzois ia e voltava na profundidade escura do mar não atingindo a superfície da água. Estrategicamente decidiu esquecer de tudo pois talvez mais tarde um forte puxão, um susto, arrancasse daquela rêde o tal nome.
O bigodinho e o sapato reluzente inesperadamente surgiam de forma frequente a partir daquele telefonema, mas o nome do terapeuta, qual seria?
Daí teve um sonho; tagarelava sobre arte com amigos e conversa vai, conversa vem falou: Marcel Duchamps é o representante da escola....o nome não vinha e quando percebeu o bloqueio pediu ajuda aos amigos oníricos mas ninguém sabia.
Na manhã seguinte já ao acordar o tal bigodinho e o sapato estavam com ele, agarrados nele. Começou a ficar irritado, deixou cair a xícara de café no chão, falou alto com o cachorro e aí fez o propósito de esquecer tudo isto e foi passear pelos arredores de sua casa.
Quando se percebeu estava com a cara enfiada na grade de losangos prateada da janela da casa da vizinha a gritar repetidamente a mesma frase: qual o nome do teu terapeuta? A pergunta feita em tom estridente ecoava casa adentro. Do fundo da residência vinha uma música suave. seria Chopin? Na sala um piano marrom fechado, na mesa alguns livros espalhados e a fotografia de uma menina loura. Nenhum sinal de som humano.
O ruído inesperado de um liquidificador surgiu tirando-lhe do ar e então pode ver no espaço de sua mente uma palavra em neon de diversas cores:DADAÍSMO.
O sonho estava resolvido mas o nome do tal terapeuta, qual seria?

domingo, 24 de janeiro de 2010

O HOMENZINHO DE CABEÇA REDONDA

Há uma inquietação que se manisfesta também nos pensamentos. Um planejar incessante de ir para outro lugar, perto de onde estou ou mais longe onde ninguém me conhecesse. Lá trocaria de nome, um nome local,tipo José de Tal, Euclides da Silva ou Cleiton Rodrigues.
Colocaria uma peruca ou então deixaria meus poucos fios de cabelo crescerem e os pintaria, bem como a barba, de vermelho;seria um ruivo, simplesmente um velhinho ruivo, nada mais. A restauração da pintura seria realizada a noite sempre às escondidas. Os produtos usados em tal procedimento seriam guardados a sete chaves e comprados numa grande cidade bem longe dali.
O sotaque local treinaria em frente a um espelho que funcionaria também como um gravador de voz. De início fiquei em dúvida se não falaria como os colonos que vivem lá no alto da serra. Decidi após algum tempo que não pronunciaria as palavras daquele geito pois poderia chamar muita atenção e viraria uma espécie de figura folclórica local. E aí quando alguém, um tipo de secretário do turismo da pequena vila, com intenções não muito claras chamasse uma emissora de TV para registrar as belezas locais eu poderia sair em rede nacional e seria desvendado o desaparecimento misterioso do homenzinho de cabeça redonda.

23/01/2010

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

AUDIÇÃO MUSICAL

Está quase na hora de minha apresentação ao piano. A música programada é bastante curta. É a presença que importa, havia dito a professora, estimulando-me a participar da audição musical de fim de ano de sua escola.
O teatro do tempo do Império, recentemente restaurado, continha cerca de cem cadeiras dispostas em filas que iam de um lado ao outro da platéia deixando somente um pequeno espaço entre elas e a parede por onde circulavam as pessoas. Saindo de um lado do palco, formando um círculo quase completo, uma série de pequenos camarotes surgiam terminando no outro lado, onde haviam cadeiras de melhor qualidade - poltronas de veludo na realidade - que as da platéia. Eu não quero dizer mas não posso ficar calado, estas eram de palha. Talvez faltara verbas ou tempo para comprar algo melhor, pensei, no momento em que coloquei os pés no palco e vi a diferença gritante. Percebo então que estou calmo demais apesar de não ter ensaiado a tal música. Tento executá-la na mente - um mini-ensaio - enquanto as pessoas vão se acomodando nos seus assentos. Começo a ler com uma certa dificuldade os sinais musicais que estão escritos em um papel envelhecido e num sobressalto noto ao verificar que a música programada não era aquela que pensava ser e que de alguma maneira sabia enrolar um pouco no piano. Daí fiquei em dúvida se não havia sido um erro qualquer, uma troca de última hora. A partitura da música que estava em minha frente me era desconhecida apesar de parecer bem simples mas tinha dificuldade em decifrar as notas no meio da penumbra e por trás das lentes embaçadas dos óculos. Estou catando as notas, pensei; esta é uma constatação da verdade nua e crua. Entro em pânico. Tenho certeza que vou perder o controle mas tento permanecer calmo. No fundo há um desespero. A professora, uma senhora nos seus cinquenta anos, entre as cortinas de veludo verde no fundo do palco, está quase fora de si de nervosa. De sua boca vermelha entreaberta sai a ponta da língua rosada e úmida. Teria sido outrora um lagarto ou outro réptil qualquer, pensei. E aquela fotografia de um jovem padre pendurada da sala onde transcorriam suas aulas estaria retratando o mesmo homem, agora barrigudo e pálido, que por muitas vezes vira lá no fundo do quintal espiar pela porta de madeira escura o que estava acontecendo quando caíamos em gargalhadas no meio da aula?
O PIQUENIQUE

Existia nele um certo grau de aflição; algo indiferenciado. Pensava assim: e se fosse visitar algum amigo? Mas esta ideia lhe ressaltou ainda mais seu desconforto e lhe veio a visão de sair correndo de lá pela enorme vontade de retornar à sua cama.
Pela manhã vira um ônibus de excursão parado e ao seu lado algumas pessoas esperando o momento de embarcarem; iam passear.
Alguns homens brincavam na calçada com uma bola iniciando asim seu dia de divertimento. Já estavam ensaiando as grandes jogadas que seriam realizadas posteriormente na beira do mar. Era um início de um continuum que teria seu ápice provavelmente algumas hora mais tarde antes de se embebedarem completamente e de se fartarem com a comida preparada por suas mulheres na noite anterior ao piquenique. Depois dormiriam esparramados na areia debaixo de alguma árvore ou sob alguma sombrinha de praia estampada de fundo azul e com flores vermelhas e amarelas.
Uma de suas mulheres de maiô preto sentada ao lado do marido que ressona, limpa os dentes com um palito e depois lambendo os lábios olha ao longe vagamente, o horizonte?
26 de março de 1988
A PORTA DO QUARTO 5


- Se parece com o pai, diz a Parteira.
- Não, não, se parece com a mãe, murmura a tia da criança, parando de mascar chiclete.
- Que nada, a avó grita agudamente. Era o Toninho quando criança. É a carinha e o corpinho do Toninho. Como era bonitinho, diz, surgindo no rosto uma expressão de desânimo.
- Não vovó, esbraveja a irmazinha, acho o nenê tão parecidinho com a mamãe. Tão gordinho!
- Me lembra o meu pai, naquela fotografia que a mamãe tinha, afirmou cerimosiosamente a outra avó. No meio da longa barba, a azul transparente dos olhos.
- O choro dele é forte que nem a voz do vovô, fala fininho o irmão.
- Pelo jeito que mexe as pernas vai ser um jogador da Avaí, diz com orgulho o pai, pendurando uma camisa com listas azul e branca na porta do quarto 5.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

O CHEFE

De uma vez por todas, disse em tom alto, de uma vez por todas hoje eu digo o que tenho que dizer, e bati com força na porta fechada.
Ninguém atendeu mas continuei parado em frente à porta do Diretor esperando empertigado que alguma pessoa me visse ali e para tanto olhava para um lado e para outro, e impaciente trocava os papéis reveladores da mão direita para a esquerda e vice-versa.
Bati novamente com mais força porém já não mais me sentia natural dando aqueles socos na madeira envernizada. Lá de dentro da sala vinha o som estridente da campainha do telefone desesperadamente tentando ser aquietado, mas como poderia acalmá-lo se a porta estava fechada? Olhei insistentemente para trás na esperança de que a visão de alguém me aumentasse a vontade definhada de contar ao Chefe toda a verdade. Este pensamento me aprumou. Arrumei a gola da camisa, passei a mão nas mangas do paletó para retirar algum pó inexistente e arrumei os óculos. Bati na porta logo em seguida e desta vez cheguei a dizer bem alto o nome do Diretor para em seguida ficar todo ruborizado pelo tom da voz que soou em falsete. Perscrutei, nestas cincunstância, com os cantos dos olhos todo o ambiente ao meu redor a fim de certificar-me se alguma viva alma naquele momento estava me observando.
Esperei um pouco até me restabelecer do nervosismo e dei novamente dois socos de leve na porta torcendo para que ninguém tivesse escutado as batidas mas mesmo assim mexi na maçaneta e gritei em vom firme: Senhor Diretor, quero lhe contar uma novidades.
Transferi então os papés outra vez para a mão direita e saí em passos rápidos e mudos sempre procurando espreitar se Pedro, José ou Maria ou quem quer que fosse, de repente surgiria no fundo do corredor.